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domingo, 28 de junho de 2009

O ALEPH: RELAÇÃO ENTRE BORGES NARRADOR E CARLOS ARGENTINO


Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, Ítalo Calvino cita o autor Jorge Luis Borges como exemplo do ideal estético, de exatidão da imaginação e de linguagem. Calvino explica porque Borges representa o escritor ideal:

"Cada texto seu contém um modelo do universo ou de um atributo do universo- o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico; porque são sempre textos contidos em poucas páginas, com exemplar economia de expressão; porque seus contos adotam frequentemente a forma exterior de algum gênero da literatura popular, formas consagradas por um longo uso, que as transforma quase em estruturas míticas" (pág. 133).

Publicado no fim da Segunda Grande Guerra, O Aleph, livro de Jorge Luis Borges, apresenta conto homônimo em que o universo surge, com toda sua intensidade, aos olhos do narrador. O Aleph, pequena esfera que reproduz a eternidade, é o centro que aguça essa narrativa. Com a voracidade de se interpretar o fantástico, o alegórico e o maravilhoso, às vezes, ficam para trás as minúcias, que são de extrema importância para a elaboração de uma história. O Aleph só será revelado, no conto, após um intenso convívio entre Borges, narrador em primeira pessoa, e Carlos Argentino, personagem.
Tudo começa com a paixão do narrador por Beatriz Viterbo, paixão que não é correspondida. A mulher que o esnobava morre em fevereiro de 1929. Necessitando sentir-se próximo à mulher morta, Borges passa a freqüentar a casa que, durante anos, abrigou a amada. Suas visitas sempre aconteciam no dia do aniversário de Beatriz, 30 de abril.
O narrador faz essas visitas de 1929 a 1941, são doze anos dedicados à memória de Beatriz e doze anos de um contato insólito com Carlos Argentino, primo da amada que reside na casa. A relação entre narrador e personagem, aos poucos, vai revelando-se na narrativa. Sentimentos como inveja, concorrência e admiração são visíveis. Todas as informações que são dadas ao leitor do conto, vêm do relato do narrador em primeira pessoa, por isso, todas as descrições feitas sobre o personagem Carlos Argentino podem estar encobertas por sentimentos de repulsa, ciúme e despeito.
Do início ao fim do conto, Carlos Argentino é retratado de forma desmoralizante e sarcástica. Lê-se:

"Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente";... (pág. 159).

O desprezo do narrador principia com expressões do gênero: cargo subalterno, biblioteca ilegível. O local e o trabalho do homem são minorizados por Borges, assim como o talento do homem: “Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante” (pág. 159). A partir desse momento, o leitor desconfia que há, na verdade, uma certa admiração do narrador por Carlos Argentino que, em linhas mais explícitas, parece ser desprezo e motivo de sátira.
Se a atividade de Argentino, segundo as descrições de Borges, beira o patético, há quesitos que parecem ferir o narrador. Carlos Argentino, em toda sua patética vida, ao contrário de Borges, é apaixonado e versátil, enquanto o narrador é prostrado, vive de lembranças, amarguras, mantendo uma personalidade metódica e obsessiva.
O sentimento de Borges, em relação a Carlos, desdobra-se entre o desprezo e o fascínio. Ao ver Argentino, Borges é capaz de encontrar uma sutil semelhança física entre o primo e Beatriz: “Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas” (pág. 160). Borges parece querer forjar, em uma tentativa vã, o ressurgimento de sua amada em Carlos.
Como conseqüência de longo convívio, para além das minúcias físicas e psicológicas, adentra na narrativa a questão do fazer literário. Tanto Borges quanto Carlos estão mantendo uma relação que está intensamente ligada à literatura. Em uma das passagens do conto, Argentino mostra o poema intitulado “Terra”, no qual descreve o planeta. Aos olhos de Borges, nas estrofes do poema “nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior” (pág.161).
Nessa passagem, o narrador faz questão de demonstrar, segundo sua opinião, a mediocridade de Argentino. A produção literária, a estética perfeita e rigorosa é artigo que Carlos não domina. Borges deixa evidente seu sentimento de superioridade em relação ao “amigo”. Superioridade que “cai por terra” quando, no fim do conto, o narrador diz que Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura, enquanto ele se quer obteve um voto. Lê-se: “Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja!” (pág. 172).
No decorrer da trama, há um fato bem significativo. À medida que o tempo passa (período de 12 anos), a imagem de Beatriz parece, aos poucos, fenecer. Se, no início da história, Beatriz era descrita extensamente, do meio para o fim, sua imagem vai sendo substituída pela presença do primo, Carlos Daneri. A abominação que Borges sente por Argentino, faz com que esse alcance uma dimensão de destaque no conto. O convívio do narrador com o personagem é tão intenso que chega às raias da contradição, quando Borges aguarda ansiosamente um telefonema de Daneri (homem o qual diz odiar):

“Felizmente, nada ocorreu - salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia” (pág. 165).

Borges aparenta ter um complexo de inferioridade perante os membros dessa família. O narrador sente-se humilhado, tanto que seu ódio transforma-se em inveja, em necessidade de se achar extremamente necessário à existência de Carlos Argentino. Borges, no fundo, quer estabelecer uma relação em que o outro sinta-se submisso e dependente dele (tudo que Beatriz não foi). E, por fim, surge o elemento altamente significativo do conto, ocorre a revelação da existência de um Aleph. Nessa passagem, Borges considera Argentino um louco, tenta atribuir todo o desprezo que sofreu por parte de Beatriz a essa loucura:

Carlos Argentino era louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade no fundo, sempre nos detestamos (pág. 167).

Questiona-se: quem detestava quem? Mais. O que Borges realmente sentia por Beatriz? O que Borges realmente sentia por Carlos? O que Carlos sentia por Borges? Pode-se fazer várias leituras sobre isso... Todas as informações que há sobre Carlos Argentino são dadas por Borges. Em todos os diálogos em que Carlos surge, há algo de caricato em suas falas e em seus gestos. O pedantismo e a mania de grandeza, características as quais são atribuídas a Argentino, acabam por se virar para o lado do narrador, quando Borges insiste em caricaturar o provincianismo e o deslumbramento de Daneri , revela-se um Carlos, revela-se o outro.