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terça-feira, 28 de julho de 2009

As Flores do Mal: Provocação, Degradação e Beleza em Baudelaire


As Flores do Mal, livro publicado em 1857 pelo poeta Charles Baudelaire, é considerado um marco na produção literária do fim do século XIX. Com suas Flores do Mal, o poeta inventa uma linguagem na qual a realidade grotesca interage com a linguagem sublimada do Romantismo (Auerbach).
Para se entender melhor a poesia de Baudelaire e suas características tão peculiares, é preciso ater-se no ambiente e na época em que o poeta transitava. Tanto o país (França), como a capital (Paris) vivia os deslumbres da modernidade. Paris, a grande cidade, apresentava os contrastes entre o velho e o novo, resquícios do passado e apontamentos da modernidade e, por sua vez, essa alteração interferia nas relações sociais (modernidade alterando o perfil da sociedade). A época, resultado do processo de antropofização, proporcionava uma valorização do individualismo, do olhar voltado para a exterioridade, para o concreto, deixando de lado a vida interior.
A produção poética de Baudelaire manifesta este contraste entre a modernidade e os valores da interioridade. Esse conflito gera, como traço caracterizador de sua poesia, elementos como a degradação, a provocação e a beleza. Segundo o crítico Otto Maria Carpeaux, Baudelaire foi um poeta que escreveu com maestria sobre o dilema de uma época e os efeitos que esse dilema causava à sensibilidade do poeta. Lê-se:

A poesia de Baudelaire exprime igualmente as convulsões do seu tempo e a angústia de todos os tempos. Eis a relação da sua poesia, na aparência tão sofisticada, com a vida, relação sem a qual não há grande poesia. E Baudelaire é um poeta muito grande (pág. 124).

Elementos como a provocação e a degradação revelam o estado de ânimo do autor (geralmente o tédio) que faz com que o poeta reflita sobre seu tempo, sentindo um desconforto, mantendo-se sempre no lugar do inadaptado social. Baudelaire ao ser provocativo, criticando a hipocrisia e a alienação social, acaba por revelar a degradação que o meio provoca e, consequentemente, passa. A beleza principia-se justamente a partir da degradação. Segundo o escritor Carlo Argan, a beleza é um artifício que pode surgir dos elementos mais inesperados:

O belo pode-se distinguir em tudo o que sai do acostumado, do normal e do mediano. Inclusive o feio e o cômico, levados ao limite, são belos... o artista tem o dever de ser uma exceção, de sentir mais que os demais e de maneira distinta; só marginalizando-se da sociedade pode estar em condições de analisar, interpretar e, dentro dos limites de suas possibilidades, orientar e dirigir a sociedade (pág. 78).

A beleza em Baudelaire não combina com a normalidade. A beleza está, como escreve Argan, no limite. Em Spleen (LXXXI) isso é bem notório. Lê-se:

E quando pesa o céu, tal tampa grave e baça,
Sobre o espírito a gemer aos tédios e açoites,
E do horizonte enfim todo o círculo abraça,
Vertendo um dia negro e mais triste que as noites;

E quando a terra muda em úmida enxovia,
Em que a Esperança é como morcego perdido,
Onde sua asa vibra em medrosa agonia,
Roçando a cabeça por teto apodrecido;

E quando a chuva alonga estas linhas tamanhas,
Sempre a imitar as grades desta vasta cadeia,
E o mudo tropel das infames aranhas
Em nosso coração estende a sua teia.

Os sinos se dispõem com loucura a saltar,
Lançando para o céu o seu uivo horripilante,
E começa a gemer tão obstinadamente.

- E os carros funerais, sem música ou tambor,
Lentos passam por mim e a esperança destarte
Vencida, chora; e a angústia estorce-se de dor,
Sobre o meu crânio implanta o seu negro estandarte.

Na 1ª. estrofe, o céu não surge como imagem poética que manifesta a suavidade, muito pelo contrário, o céu é uma tampa que domina todo o horizonte. O céu é negro, e torna o dia mais escuro que a própria noite. O abraço do céu sobre o círculo, que envolve a todos, indica a condição de sufocamento. O poeta, em uma linguagem metafórica, descreve o dia, turno que deveria ser iluminado, como algo obscuro, sinistro. Dias e noites igualam-se.
Em dias assim, tão obscuros, a esperança parece minguar. Na segunda estrofe, a Esperança é escrita com letra inicial maiúscula, ou seja, é personificada pelo poeta. Tal sentimento, o que mais persiste no homem, está agonizando, o medo parece vencer a esperança, que roça sua cabeça no céu de escuridão. Há, nessa estrofe, o sentimento de poeta vencido, o eu - lírico não consegue visualizar nada que possa transfigurar-se em luz.
Já na 3ª. estrofe, a chuva surge como elemento que imita a vasta cadeia que a terra é, assim esse fenômeno natural torna contundente a imagem da prisão. Sabendo-se que a terra é sinônima de germinação e que necessita da chuva nesse processo (tudo que chamamos vida), ocorre aqui uma inversão: tanto a terra quanto a chuva designam a morte em iminência, não somente a morte do corpo, mas principalmente a morte da liberdade. A chuva, com suas linhas verticais, forma a figura de uma prisão. As aranhas imobilizam o coração do homem com suas teias. O eu - lírico considera-se prisioneiro de um mundo com o qual ele não se identifica.
Os sinos, na 4ª. estrofe, não badalam, eles soltam uivos, assim como o espírito geme, sinalizando um processo doloroso de vida. O poeta já não sente seu corpo (matéria quase inexistente) a caminhar, o poeta agora é espírito sem destino, despossuído no meio degradante em que circula.
Na estrofe conclusiva, o eu - lírico só tem como companheira a angústia. A música, elemento geralmente festivo, sequer está presente no funeral. Nessa parte final, fica visível a monotonia, os carros funerais, representando a morte, caminham lado a lado com o poeta, a esperança está morta, o eu - lírico entediado é a personificação da morte em vida.
Enfim, Baudelaire por se posicionar no limiar da sociedade, soube analisá-la e interpretá-la. Foi provocativo ao mostrar a degradação causada pela modernidade e mais, demonstrou riqueza estética ao conseguir unir à degradação, a figura do belo. Baudelaire escreveu sobre um tempo em que não há esperança, sobre um tempo em que não se pode recriar a liberdade, sobre um tempo em que a tentativa de reconstruir a liberdade lateja em dor. Como disse Carpeaux: “a poesia de Baudelaire exprime as convulsões do seu tempo e a angústia de todos os tempos”.