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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

TAGLIAFERRI TECENDO A MANHÃ

Pena que, no Brasil, a música instrumental não ocupe seu lugar merecido de destaque. Tudo o que se escuta nas rádios da hora é o som: MUITO OBRIGADA, MAS NÃO QUERO! Raros são os programas que se empenham em divulgar o que de legal se faz por essas bandas da América do Sul. É preciso resevar um espaço para a preterida música instrumental. Uma das melhores apresentações que vi, nos últimos tempos, foi o encontro de Paulo Moura (saxofonista e clarinetista) e Yamandu Costa (violonista). Paulo tocando com a maestria e com a beleza de se saber sábio, Yamandu com a ansiedade de quem é prodígio. Resultado disso: explosão musical! Entende quem viu e ouviu.
Além desses caras, existem muitos que estão aí, na roda, insistindo em fazer o que melhor sabem: a ótima música. Nomes? Egberto Gismonti, Chico Saraiva, Benjamin Taubkin, Plauto Cruz e muitos outros. Finalizo com Fábio Tagliaferri, tocador de viola, compositor e intérprete. Amigo e participante do grupo paulistano, pra lá de bom, composto por Luiz Tatit, Ná Ozzetti, Wisnik, Paulo Tatit, Mônica Salmaso, Arthur Nestrovski... No cd intitulado Viola, Tagliaferri toca composições próprias e interpreta Mané Silveira (Choreto), Edsel Gomes (La Violetera), Paulinho da Viola (Inesquecível), Wisnik (Terra Estrangeira). Fecha o cd com composição própria e letra de David Calderoni, única música cantada, com voz de Eugénia de Melo e Castro. Poesia pura, além de fazer uma justa homenagem ao poeta João Cabral. Vale conferir.
Pela Manhã (Fábio Tagliaferri e David Calderoni)
Dista o quebra-mar
desta embarcação
cento e dez aflições
ao nordeste sul
mede a direção:
graus e pés
nós e mãos
Grita a megalópole e arranha o céu
Porém cosmopolita astrolábio do eu
saturnais
viração
passa-anéis
vão e vão
Freme a incandescência germinal da névoa vã
Cruza e se entrecruza a cabralina luz-balão
Brota ao léu
a inicial
dos confins
Hora de partir
flecha do olhar
Desfechar
acordar
Zéfiro a zunir
dardo harpejador
Despertar dessa dor
Calma pulsação febril da estrela-anã
nos galos do poema Tecendo a Manhã
Dor de amor
é ilusão
ilusão
é ilusão
Amar, não!

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A FLOR DE VIDRO


O conto A Flor de Vidro, de Murilo Rubião, foi publicado no ano de 1965 no livro Os Dragões e Outros Contos. Nessa história há elementos característicos da obra do autor, elementos esses que se encaixam na tendência do conto fantástico alegórico. A Flor de Vidro está envolto em uma esfera labiríntica onde passado e presente, assim como memória e sonho parecem mesclar-se ao longo da narrativa.
O conto é uma história de ausência, ausência que se revela em dor. A mulher amada, Marialice, que no tempo presente está distante, é o motivo dos tormentos de Eronides, homem que não esquece e vive da promessa de um retorno que não se concretiza. No início do conto lê-se: “Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga” (pág.129). “A flor de vidro”, grande metáfora do conto, apresenta-se na primeira linha, também como a informação que essa é uma história de memória, através do verbo no pretérito imperfeito: restava.
A presença de Marialice estava nos objetos, no ambiente que fora testemunha do amor do casal: “O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão” (pág.129). De repente, esse homem escuta o nome Marialice, não sabendo se fora o apito do trem, ou o grito da velha empregada. Através desse recurso, começa-se a adentrar na história do casal, tem-se as informações de como era a relação dos amantes. Em seu delírio, Eronides reencontra sua amada, agora mais velha e compreende que “Marialice viera para sempre”.
Passa a noite com Marialice e, entre os “limites do sonho”, olha-se no espelho. “Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera” (pág. 131). Eronides “avança para o passado”, passado em que não era cego de um olho. O personagem revive a praga dita por Marialice: “Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo!” (pág. 131). Tal frase é dita em uma corrida pelo bosque, lugar onde sempre passeavam. Como recompensa da praga, Eronides dá a Marialice uma flor azul.
O fim das férias chega e Marialice parte no trem, a flor de vidro que , às vezes Eronides avistava, revela-se: “Na volta, um galho cega-lhe o olho” (pág.132).
Essa narrativa breve, de três páginas, está repleta de enigmas. O primeiro elemento a ser considerado é a epígrafe do conto. Nela há uma passagem do Antigo Testamento em que se lê: “E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz”, pode-se interpretar que Marialice seja essa luz que chega em uma tarde, em um dia limite entre o sonho e a realidade, luz que vivifica assim como cega. Pois, segundo Jean Chevalier, a luz pode significar:

“Tudo que é maléfico ou de mau augúrio é jogado na sombra e na noite. Existe, por outro lado, uma equivalência simbólica da luz e do olho: o sol é chamado Ilygard y dydd, olho do dia, pelos poetas galeses; a expressão irlandesa li sula, luz do olho, é uma metáfora sábia que designa o brilho do sol”[1].

Outro elemento a ser considerado é a figura do trem. O trem surge como o elemento que sempre lembrará a presença de Marialice. É através dele que, no início da história, há uma personificação de Marialice, assim como no fim da história , o trem é o símbolo de partida da mulher amada. O trem, em seu movimento de idas e vindas, condena Eronides a ter em seu plano de memória a presença de Marialice. É preciso ressaltar que o trem, quando traz a mulher amada, chega em uma tarde (luz citada na epígrafe).
Outra imagem significativa é a “flor azul” que Eronides oferece à Marialice, logo após a amada lhe rogar a praga. Aparentemente, a citação parece descabida dentro da narrativa, mas percebe-se que a flor azul é um contraponto `a flor de vidro. A simbologia da flor azul pode indicar uma leveza que, posteriormente, transformar-se-á em tormento, na flor de vidro.
Desse ponto de partida, talvez, possa-se atar os nós para se decifrar a grande metáfora da narrativa: a flor de vidro. Não se sabe se a cegueira é de fato concreta, há uma possibilidade de ser uma alegoria. A flor de vidro pode representar uma imagem que ficou “congelada” no olhar, Marialice cristalizada nos olhos e no coração de Eronides.
O grande mérito desse conto é a forma como o qual é narrado. Essa história revela-se através de um narrador heterodiegético que conduz o leitor, muito sutilmente, ao plano da memória e do imaginário. A maneira como o narrador introduz o leitor ao conto, acaba por induzir a quem o lê a sentir a inquietação e o tormento dos quais Eronides é vítima.
Assim, nesse limiar de memória e sonho, o tempo é dado em pequenos fragmentos que revelam ao leitor o que é uma possível lembrança e o que é presente, misturando-se ao plano do devaneio, ou seja, ocorre uma analepse (retorno ao passado) e, de certa forma, uma prolepse (sonho premonitório com a flor de vidro). Todos esses recursos tornam o espaço pouco nítido, o ambiente apresenta-se como um espaço rural, provavelmente uma fazenda.
Com tantos recursos de criação enfatizando a temporalidade, o universo psicológico e alegórico, o que se pode concluir, de fato, em A flor de vidro, é que Eronides é prisioneiro de uma paixão. Eronides sobrevive a uma ausência que se cristaliza em flor.


[1] CHEVALIER, p.568.

terça-feira, 28 de julho de 2009

As Flores do Mal: Provocação, Degradação e Beleza em Baudelaire


As Flores do Mal, livro publicado em 1857 pelo poeta Charles Baudelaire, é considerado um marco na produção literária do fim do século XIX. Com suas Flores do Mal, o poeta inventa uma linguagem na qual a realidade grotesca interage com a linguagem sublimada do Romantismo (Auerbach).
Para se entender melhor a poesia de Baudelaire e suas características tão peculiares, é preciso ater-se no ambiente e na época em que o poeta transitava. Tanto o país (França), como a capital (Paris) vivia os deslumbres da modernidade. Paris, a grande cidade, apresentava os contrastes entre o velho e o novo, resquícios do passado e apontamentos da modernidade e, por sua vez, essa alteração interferia nas relações sociais (modernidade alterando o perfil da sociedade). A época, resultado do processo de antropofização, proporcionava uma valorização do individualismo, do olhar voltado para a exterioridade, para o concreto, deixando de lado a vida interior.
A produção poética de Baudelaire manifesta este contraste entre a modernidade e os valores da interioridade. Esse conflito gera, como traço caracterizador de sua poesia, elementos como a degradação, a provocação e a beleza. Segundo o crítico Otto Maria Carpeaux, Baudelaire foi um poeta que escreveu com maestria sobre o dilema de uma época e os efeitos que esse dilema causava à sensibilidade do poeta. Lê-se:

A poesia de Baudelaire exprime igualmente as convulsões do seu tempo e a angústia de todos os tempos. Eis a relação da sua poesia, na aparência tão sofisticada, com a vida, relação sem a qual não há grande poesia. E Baudelaire é um poeta muito grande (pág. 124).

Elementos como a provocação e a degradação revelam o estado de ânimo do autor (geralmente o tédio) que faz com que o poeta reflita sobre seu tempo, sentindo um desconforto, mantendo-se sempre no lugar do inadaptado social. Baudelaire ao ser provocativo, criticando a hipocrisia e a alienação social, acaba por revelar a degradação que o meio provoca e, consequentemente, passa. A beleza principia-se justamente a partir da degradação. Segundo o escritor Carlo Argan, a beleza é um artifício que pode surgir dos elementos mais inesperados:

O belo pode-se distinguir em tudo o que sai do acostumado, do normal e do mediano. Inclusive o feio e o cômico, levados ao limite, são belos... o artista tem o dever de ser uma exceção, de sentir mais que os demais e de maneira distinta; só marginalizando-se da sociedade pode estar em condições de analisar, interpretar e, dentro dos limites de suas possibilidades, orientar e dirigir a sociedade (pág. 78).

A beleza em Baudelaire não combina com a normalidade. A beleza está, como escreve Argan, no limite. Em Spleen (LXXXI) isso é bem notório. Lê-se:

E quando pesa o céu, tal tampa grave e baça,
Sobre o espírito a gemer aos tédios e açoites,
E do horizonte enfim todo o círculo abraça,
Vertendo um dia negro e mais triste que as noites;

E quando a terra muda em úmida enxovia,
Em que a Esperança é como morcego perdido,
Onde sua asa vibra em medrosa agonia,
Roçando a cabeça por teto apodrecido;

E quando a chuva alonga estas linhas tamanhas,
Sempre a imitar as grades desta vasta cadeia,
E o mudo tropel das infames aranhas
Em nosso coração estende a sua teia.

Os sinos se dispõem com loucura a saltar,
Lançando para o céu o seu uivo horripilante,
E começa a gemer tão obstinadamente.

- E os carros funerais, sem música ou tambor,
Lentos passam por mim e a esperança destarte
Vencida, chora; e a angústia estorce-se de dor,
Sobre o meu crânio implanta o seu negro estandarte.

Na 1ª. estrofe, o céu não surge como imagem poética que manifesta a suavidade, muito pelo contrário, o céu é uma tampa que domina todo o horizonte. O céu é negro, e torna o dia mais escuro que a própria noite. O abraço do céu sobre o círculo, que envolve a todos, indica a condição de sufocamento. O poeta, em uma linguagem metafórica, descreve o dia, turno que deveria ser iluminado, como algo obscuro, sinistro. Dias e noites igualam-se.
Em dias assim, tão obscuros, a esperança parece minguar. Na segunda estrofe, a Esperança é escrita com letra inicial maiúscula, ou seja, é personificada pelo poeta. Tal sentimento, o que mais persiste no homem, está agonizando, o medo parece vencer a esperança, que roça sua cabeça no céu de escuridão. Há, nessa estrofe, o sentimento de poeta vencido, o eu - lírico não consegue visualizar nada que possa transfigurar-se em luz.
Já na 3ª. estrofe, a chuva surge como elemento que imita a vasta cadeia que a terra é, assim esse fenômeno natural torna contundente a imagem da prisão. Sabendo-se que a terra é sinônima de germinação e que necessita da chuva nesse processo (tudo que chamamos vida), ocorre aqui uma inversão: tanto a terra quanto a chuva designam a morte em iminência, não somente a morte do corpo, mas principalmente a morte da liberdade. A chuva, com suas linhas verticais, forma a figura de uma prisão. As aranhas imobilizam o coração do homem com suas teias. O eu - lírico considera-se prisioneiro de um mundo com o qual ele não se identifica.
Os sinos, na 4ª. estrofe, não badalam, eles soltam uivos, assim como o espírito geme, sinalizando um processo doloroso de vida. O poeta já não sente seu corpo (matéria quase inexistente) a caminhar, o poeta agora é espírito sem destino, despossuído no meio degradante em que circula.
Na estrofe conclusiva, o eu - lírico só tem como companheira a angústia. A música, elemento geralmente festivo, sequer está presente no funeral. Nessa parte final, fica visível a monotonia, os carros funerais, representando a morte, caminham lado a lado com o poeta, a esperança está morta, o eu - lírico entediado é a personificação da morte em vida.
Enfim, Baudelaire por se posicionar no limiar da sociedade, soube analisá-la e interpretá-la. Foi provocativo ao mostrar a degradação causada pela modernidade e mais, demonstrou riqueza estética ao conseguir unir à degradação, a figura do belo. Baudelaire escreveu sobre um tempo em que não há esperança, sobre um tempo em que não se pode recriar a liberdade, sobre um tempo em que a tentativa de reconstruir a liberdade lateja em dor. Como disse Carpeaux: “a poesia de Baudelaire exprime as convulsões do seu tempo e a angústia de todos os tempos”.

domingo, 28 de junho de 2009

O ALEPH: RELAÇÃO ENTRE BORGES NARRADOR E CARLOS ARGENTINO


Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, Ítalo Calvino cita o autor Jorge Luis Borges como exemplo do ideal estético, de exatidão da imaginação e de linguagem. Calvino explica porque Borges representa o escritor ideal:

"Cada texto seu contém um modelo do universo ou de um atributo do universo- o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico; porque são sempre textos contidos em poucas páginas, com exemplar economia de expressão; porque seus contos adotam frequentemente a forma exterior de algum gênero da literatura popular, formas consagradas por um longo uso, que as transforma quase em estruturas míticas" (pág. 133).

Publicado no fim da Segunda Grande Guerra, O Aleph, livro de Jorge Luis Borges, apresenta conto homônimo em que o universo surge, com toda sua intensidade, aos olhos do narrador. O Aleph, pequena esfera que reproduz a eternidade, é o centro que aguça essa narrativa. Com a voracidade de se interpretar o fantástico, o alegórico e o maravilhoso, às vezes, ficam para trás as minúcias, que são de extrema importância para a elaboração de uma história. O Aleph só será revelado, no conto, após um intenso convívio entre Borges, narrador em primeira pessoa, e Carlos Argentino, personagem.
Tudo começa com a paixão do narrador por Beatriz Viterbo, paixão que não é correspondida. A mulher que o esnobava morre em fevereiro de 1929. Necessitando sentir-se próximo à mulher morta, Borges passa a freqüentar a casa que, durante anos, abrigou a amada. Suas visitas sempre aconteciam no dia do aniversário de Beatriz, 30 de abril.
O narrador faz essas visitas de 1929 a 1941, são doze anos dedicados à memória de Beatriz e doze anos de um contato insólito com Carlos Argentino, primo da amada que reside na casa. A relação entre narrador e personagem, aos poucos, vai revelando-se na narrativa. Sentimentos como inveja, concorrência e admiração são visíveis. Todas as informações que são dadas ao leitor do conto, vêm do relato do narrador em primeira pessoa, por isso, todas as descrições feitas sobre o personagem Carlos Argentino podem estar encobertas por sentimentos de repulsa, ciúme e despeito.
Do início ao fim do conto, Carlos Argentino é retratado de forma desmoralizante e sarcástica. Lê-se:

"Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente";... (pág. 159).

O desprezo do narrador principia com expressões do gênero: cargo subalterno, biblioteca ilegível. O local e o trabalho do homem são minorizados por Borges, assim como o talento do homem: “Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante” (pág. 159). A partir desse momento, o leitor desconfia que há, na verdade, uma certa admiração do narrador por Carlos Argentino que, em linhas mais explícitas, parece ser desprezo e motivo de sátira.
Se a atividade de Argentino, segundo as descrições de Borges, beira o patético, há quesitos que parecem ferir o narrador. Carlos Argentino, em toda sua patética vida, ao contrário de Borges, é apaixonado e versátil, enquanto o narrador é prostrado, vive de lembranças, amarguras, mantendo uma personalidade metódica e obsessiva.
O sentimento de Borges, em relação a Carlos, desdobra-se entre o desprezo e o fascínio. Ao ver Argentino, Borges é capaz de encontrar uma sutil semelhança física entre o primo e Beatriz: “Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas” (pág. 160). Borges parece querer forjar, em uma tentativa vã, o ressurgimento de sua amada em Carlos.
Como conseqüência de longo convívio, para além das minúcias físicas e psicológicas, adentra na narrativa a questão do fazer literário. Tanto Borges quanto Carlos estão mantendo uma relação que está intensamente ligada à literatura. Em uma das passagens do conto, Argentino mostra o poema intitulado “Terra”, no qual descreve o planeta. Aos olhos de Borges, nas estrofes do poema “nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior” (pág.161).
Nessa passagem, o narrador faz questão de demonstrar, segundo sua opinião, a mediocridade de Argentino. A produção literária, a estética perfeita e rigorosa é artigo que Carlos não domina. Borges deixa evidente seu sentimento de superioridade em relação ao “amigo”. Superioridade que “cai por terra” quando, no fim do conto, o narrador diz que Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura, enquanto ele se quer obteve um voto. Lê-se: “Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja!” (pág. 172).
No decorrer da trama, há um fato bem significativo. À medida que o tempo passa (período de 12 anos), a imagem de Beatriz parece, aos poucos, fenecer. Se, no início da história, Beatriz era descrita extensamente, do meio para o fim, sua imagem vai sendo substituída pela presença do primo, Carlos Daneri. A abominação que Borges sente por Argentino, faz com que esse alcance uma dimensão de destaque no conto. O convívio do narrador com o personagem é tão intenso que chega às raias da contradição, quando Borges aguarda ansiosamente um telefonema de Daneri (homem o qual diz odiar):

“Felizmente, nada ocorreu - salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia” (pág. 165).

Borges aparenta ter um complexo de inferioridade perante os membros dessa família. O narrador sente-se humilhado, tanto que seu ódio transforma-se em inveja, em necessidade de se achar extremamente necessário à existência de Carlos Argentino. Borges, no fundo, quer estabelecer uma relação em que o outro sinta-se submisso e dependente dele (tudo que Beatriz não foi). E, por fim, surge o elemento altamente significativo do conto, ocorre a revelação da existência de um Aleph. Nessa passagem, Borges considera Argentino um louco, tenta atribuir todo o desprezo que sofreu por parte de Beatriz a essa loucura:

Carlos Argentino era louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade no fundo, sempre nos detestamos (pág. 167).

Questiona-se: quem detestava quem? Mais. O que Borges realmente sentia por Beatriz? O que Borges realmente sentia por Carlos? O que Carlos sentia por Borges? Pode-se fazer várias leituras sobre isso... Todas as informações que há sobre Carlos Argentino são dadas por Borges. Em todos os diálogos em que Carlos surge, há algo de caricato em suas falas e em seus gestos. O pedantismo e a mania de grandeza, características as quais são atribuídas a Argentino, acabam por se virar para o lado do narrador, quando Borges insiste em caricaturar o provincianismo e o deslumbramento de Daneri , revela-se um Carlos, revela-se o outro.

O AMOR NATURAL EM SOBRE CORPOS E GANAS


Drummond já sabia o impacto que seu livro O Amor Natural poderia causar ao leitor mais desavisado e ao crítico literário mais conservador. O poeta até arriscou algumas publicações em revistas eróticas na década de setenta. Mas o todo foi obra póstuma.


O fato é que Drummond se permitiu desnudar a temática do amor. Mexeu no limiar entre o erotismo e a pornografia, ou seria no limiar do amor e do sexo? Fico com as duas possibilidades, uma não anula a outra, o poeta simplesmente fez poesia de modo direto com vocabulário sem rebuscamento, ou seja, poetizou o ato natural humano e todas as sensações que provoca. Leitor e poeta descobrem-se iguais ou parecidos.


Ocorreu-me então que em Porto Alegre tem um poeta que se arriscou nesta linha poética: dois Santos dos Santos. Em seu livro Sobre Corpos e Ganas, publicado em 1995, o sexo surge, em versos, como avalanche amorosa. O ato sexual, assim como a sensação que provoca, revela-se ao leitor como expressão lírica. Talvez falte, a algumas pessoas, a sensibilidade para ler seus versos, talvez ocorra uma interpretação equivocada de seus poemas e, por isso, às vezes, é comum encontrá-los em sites que os utilizam como mera ilustração verbal do sexo.


Essa falta de sensibilidade não ocorre apenas com alguns leitores, os próprios editores do livro foram infectados por uma espécie de puritanismo tardio. Em arrependimento editorial, retiraram Sobre Corpos e Ganas das prateleiras e quem saiu perdendo foi o leitor. Enfim, não há, ou pelo menos, não deveria haver hipocrisia entre quatro paredes, e por que haveria de existir na poesia?


Eis um poema do poeta Dois Santos!


Ela oferecia os seios

que ele sugava sem pressa

para sentir maior sabor

assim

como quem come moranguinhos

Com a mão espalmada

subia pelas coxas

em movimentos mais que suaves

deixando os pelinhos das pernas dela em pé

e a pele toda arrepiada

Invadindo o ventre

afagava ondas, dunas, colinas, sonhando

com regiões ainda inexploradas

Beijava logo a nuca frágil

de pássaro abatido

que dava (a ele)

essa absurda vontade de chorar

Entre sussurros mordiscava a orelha dela

E com um palavrãozinho

metia-lhe afinal a língua no ouvido

A mulher gemia a meia voz

arfava

e ele gemia junto

ao prolongar os seus ganidos

Mas isso eram só preliminares

que o mais era charco, pântano, areia

movediça

mistério a ser saboreado

sábado, 27 de junho de 2009

NÓS, OS CANCERIANOS

Até o ser mais cético do mundo arriscou uma espiadela num manual de astrologia. Afinal, que pessoa não procura, de alguma maneira, saber um pouco mais sobre si? Tudo bem, há quem consulte o analista, a manicure, o taxista, o feirante etc. Mas, vamos combinar, sempre encontramos na descrição de nosso signo algo que nos faz dizer: "essa sou eu!".


Há quem pense que isso é assunto de "mulherzinha". BA-LE-LA. Conheço muitas mulheres pra lá de especiais e homens que até mapa astral fazem. Eu não sou diferente deles e nem da mulherada do pique zodiacal. Sou canceriana e isso, pra mim, é motivo de orgulho. Até os defeitos dos nativos desse signo parecem-me simpáticos. Sei lá quantos milhares de cancerianos têm pelo mundo, mas sei de alguns que formam o verdadeiro time dos sonhos. Atenta: Ernest Hemingway, Modigliani, Marcel Proust, Ringo Starr, Carlos Gomes, Raul Seixas, Frida Kahlo, Meryl Streep, Ingmar Bergman, Franz Kafka, Dalai-Lama, Nelson Mandela, Júlio, Marga, Paco, Aline, Pâmela, Daiane e GEORGE W. BUSH. Bem, esse último é a ovelha negra do zodíaco, o legítimo inferno astral dos cancerianos. Deixa esse pra lá.


Quero destacar o canceriano maior: GUIMARÃES ROSA. Escritor lunar, aguado, intuitivo, fechado e muito, muito sensível. Há em cada página de sua obra uma pegada de caranguejo. Quem é leitor e canceriano sabe do que estou falando. Embora considere a prosa do mestre muito mais poética do que sua poesia, encerro com SAUDADE, retrato dos nativos do signo.


Ah, tudo isso porque Guima e eu somos do mesmo dia!


Saudade de tudo!...


Saudade, essencial e orgânica,

de horas passadas,

que eu podia viver e não vivi!...

Saudade de gente que não conheço,

de amigos nascidos noutra terras,

de almas órfãs e irmãs,

de minha gente dispersa,

que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,

saudade gloriosa do futuro,

saudade de todos os presentes

vividos fora de mim!...

Pressa!...

Ânsia voraz de me fazer muitos,

fome angustiada da fusão de tudo,

sede da volta final

da grande experiência:

uma só alma em um só corpo,

uma só alma-corpo,

um só,

um!...

Como quem fecha numa gota

o Oceano,

afogado no fundo de si mesmo...

sexta-feira, 26 de junho de 2009

TIO OLIMPIO E OS HOMENS TELÚRICOS


Os atos são nosso símbolo. Qualquer destino, por longo ou complicado que seja, consta da realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é. (Jorge Luis Borges)



Até hoje, no interior (campo), há quem, em roda de fogueira, pra espantar borrachudo e clarear noite, conte causos. Era assim que meu tio Olimpio fazia em seu casebre, à beira do Ijuí, com palheiro entre os dedos e cuia de mate amargo. O tio contava histórias de duelos, mortes, amores, animais fantásticos, tesouros enterrados e muitas assombrações. Era perito nos detalhes do tramar, deixando-nos crédulos em tudo aquilo.


Tio Olimpio, homem da lavoura, analfabeto por não conciliar o idioma alemão e português, conseguia, com o poder de sua oralidade, nos presentear com mundos de mistérios, violências, amores e aventuras. Já faz alguns anos que o tio faleceu, mas é inevitável não lembrar dele quando adentro nos textos de Simões Lopes Neto, Borges e Guimarães. Quando leio esses autores, consigo encontrar na escrita tudo que ouvia em minha infância. Nomes que agem num enredo, as vezes tão diferente e, ao mesmo tempo, tão parecido. Enfim, histórias que transcendem o ambiente local e revelam-se universais, pelos atos e sentimentos de seus personagens.


Nos "causos" de tio Olimpio tinham esses homens telúricos que habitavam o espaço que vou chamar de "terra sem lei". Lugar que as ações chegam à selvageria. Daí, não tem como não relacionar a isso, contos como Negro Bonifácio ou No Manantial de Simões Lopes Neto. As estâncias, nos confins do sul, abrigando gente capaz de praticar atos tão virtuosos também como os mais cruéis.


Talvez, nem tão minucioso nas ações mais primitivas dos personagens, Borges também fala do homem telúrico. O gaúcho do pampa argentino, uruguaio ou sul-riograndense. Enfim, descreve todo o universo desse "forasteiro" em contos como O Morto ou Biografia de Tadeo Isidoro Cruz... O pampa como destino inevitável da vida e da morte.


Por outras bandas do mapa brasileiro, Guimarães Rosa com Irmãos Dagobé, Barra da Vaca, A Hora e a Vez de Augusto Matraga... faz algo semelhante. Homens telúricos que parecem querer fugir do destino inevitável, o que se camuflam no mal, revelando-se, muitas vezes, homens de bem ou regenerados. Homens movidos por circunstâncias ou sentimentos pra lá de complexos.


Ao lê-los, linhas ficcionais vão se cruzando e estabelecendo diferenças e muitas semelhanças que fazem da literatura o eterno ato da (RE) Descoberta. São Jeremoavos, Azevedos, Chicões, Bonifácios, Dagobés... Todos chegando a mim de alguma maneira. Seja através de um Tio Olimpio, de um Blau Nunes, narradores tão simples e tão fascinantes.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

RIOS SEM DISCURSO- AINDA JOÃO CABRAL

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque se cortou a sintaxe desse rio,
o fio de água por que esse discorria.

*

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

O poeta descreve, em 24 versos divididos em duas estrofes, o processo de "secamento" de um rio. Esse processo é comparado ao uso da palavra. O signo rio é comparado ao discurso. Na primeira estrofe, quando o rio chega a condição de poça, água que se quebra em pedaços, ele se equipara com a palavra em situação dicionária, ou seja, a palavra solitária que não transmite mensagem.
João Cabral em Rios Sem Discurso revela a realidade de uma região do Brasil que sofre com a seca. Como filho dessa região, o poeta mostra-se como "produto" desse meio. O que Cabral tem a elucidar e a dizer é o que está no foco de seus olhos, a imagem, então, torna-se altamente significativa em sua poesia. Segundo o escritor Alfredo Bosi, "a experiência da imagem, anterior à palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu... A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós".
A realidade da seca é a realidade do poeta. O rio transforma-se em pedra, assim como a palavra muda não comunica. Na segunda estrofe do poema, há uma possibilidade, citada pelo poeta, de o rio reatar-se. Essa possibilidade vem através de uma enchente em que, as poças unindo-se umas as outras, funcionam como as palavras que reatam seu elo sintático, formando um discurso. O poeta, porém, não ilude e não se ilude, a possibilidade aparece como algo raro "Salvo uma grandiloquência de uma cheia".
Encarando a poesia como um ato de consciência, Cabral atinge aquilo que Alfredo Bosi escreve no seu livro O Ser e o Tempo da Poesia:
" A lucidez nunca matou a arte. Como boa negatividade é discreta, não obstrui ditatoriamente o espaço das imagens e dos afetos. Antes, combatendo hábitos mecanizados de pensar e dizer, ela dá à palavra um novo, intenso e puro modo de enfrentar-se com os objetos".

A PEDRA É O CAMINHO EM JOÃO CABRAL


Em seu livro A Educação Pela Pedra, João Cabral de Melo Neto apresenta características que são determinantes em sua obra: centralização de temas nos motivos nordestinos, usando para isso a imagem concreta da seca; a escrita da poesia como um objeto que revela o real, "dirigindo-se à inteligência do leitor, através de um apelo poético racional".


Segundo a escritora Marly de Oliveira, é em Educação Pela Pedra que a "construção" dos poemas de Cabral vai ser mais complexa: "há poemas permutacionais, o Nordeste, sua cana e sua secura gerando o nordestino de falar pedregoso. É um momento alto da obra cabralina e um bom desafio ao leitor..."


Esse falar pedregoso do Nordestino transmuta-se para a escrita do poeta. Para a poesia representar a aridez e a concretude, João Cabral recorre ao rigor na escrita. Com esse rigor, o poeta escreve seus poemas, nos quais as características predominantes serão a ausência de adjetivos (quando os utilizar, esses serão concretos), distanciamento do eu-lírico e, principalmente, o uso de signos que representam sua região como a pedra, a cana, o rio, a poça. Esses signos são fundamentais, pois são elementos plásticos de ilustração de seus poemas.


Ressalta-se que esse rigor na obra cabralina muito tem a ver com as influências que o poeta sofreu ao ler os ensaios críticos de Paul Valéry. Marly de Oliveira escreve: "Valéry será sempre sinônimo da inteligência levada ao extremo, sobretudo na parte em prosa, de natureza reflexiva e crítica".


Cabe lembrar, para se ater nesse rigor cabralino, muito inspirado nos textos de Valéry, um outro autor que escreveu a respeito das lições do escritor francês. Ítalo Calvino em seu livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, no capítulo intitulado Exatidão, destaca três concepções fundamentais para o ato da criação literária. Essas concepções encontram correspondência direta com a obra do poeta brasileiro. Segundo Calvino, a exatidão na escrita significa principalmente:

1) Um projeto de obra bem definido e calculado;

2) Evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis;

3) Uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.


Tais concepções são recursos contundentes na obra de João Cabral. Em A Educação Pela Pedra, livro publicado em 1966, esses processos de escrita encontram seu ponto alto, traduzindo-se em poemas aparentemente anti-líricos com signos em que se supervalorizará o concreto como meta a ser atingida.




domingo, 29 de março de 2009




Sou areia cansada

Da ressaca

De tanto mar...

La Vida Ese Parentesis


Cuando el no ser queda en suspenso

se abre la vida ese paréntesis

con un vagido universal de hambre


somos hambientos desde el vamos

y lo seremos hasta el vámonos

después de mucho descubrir

y brevemente amar y acostumbrarnos

a la fallida eternidad


la vida se clausura en vida

la vida ese paréntesis

también se cierra incurre

en un vagido universal

el último


y entonces sólo entonces

el no ser sigue para siempre


Poema de Mario Benedetti

domingo, 31 de agosto de 2008

PENSANDO


Se fosse apenas o ato de caminharmos juntos- tão lerdos, tão apressados, alheios ao tempo.

Se fosse apenas o ato de falarmos coisas- tão complexas, tão despropositadas, duas vozes calando palavras de risco.

Se fosse apenas nossos gestos- tão calmos, tão alterados, atos involuntários de procura.

Foi só amor o ato de olharmos- tão conformados, tão desconfiados, procurando um no outro o que o tempo silenciou.


DICIONÁRIO

Do orifício criado
pela traça,
escapa pensamento.
O buraco causa graça
A palavra que procuras...
Não achas.
Na página amarelada:
tu, a traça, o buraco e...
cochichos de ácaros.

Tuas Mãos



Agora é tempo pretérito, insisto em lembrar. Você é a saudade no coração constante. Tudo te torna vivo pra mim... E vivas ainda são as tuas mãos. Mãos que eu achava pequenas e que você, porém, dizia que eram fortes. Tuas mãos que, tantas vezes, pediram para pegar as minhas. As Tuas e as Minhas: rindo, brincando, contornando, linha a linha, nossos rostos. Não sei ainda quanto tempo durará o nosso afastamento. Enquanto eu aqui permanecer, exilada neste mundo, sempre serei capaz de te recriar com o coração e a ponta dos dedos. Até um dia...