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terça-feira, 4 de agosto de 2009

A FLOR DE VIDRO


O conto A Flor de Vidro, de Murilo Rubião, foi publicado no ano de 1965 no livro Os Dragões e Outros Contos. Nessa história há elementos característicos da obra do autor, elementos esses que se encaixam na tendência do conto fantástico alegórico. A Flor de Vidro está envolto em uma esfera labiríntica onde passado e presente, assim como memória e sonho parecem mesclar-se ao longo da narrativa.
O conto é uma história de ausência, ausência que se revela em dor. A mulher amada, Marialice, que no tempo presente está distante, é o motivo dos tormentos de Eronides, homem que não esquece e vive da promessa de um retorno que não se concretiza. No início do conto lê-se: “Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga” (pág.129). “A flor de vidro”, grande metáfora do conto, apresenta-se na primeira linha, também como a informação que essa é uma história de memória, através do verbo no pretérito imperfeito: restava.
A presença de Marialice estava nos objetos, no ambiente que fora testemunha do amor do casal: “O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão” (pág.129). De repente, esse homem escuta o nome Marialice, não sabendo se fora o apito do trem, ou o grito da velha empregada. Através desse recurso, começa-se a adentrar na história do casal, tem-se as informações de como era a relação dos amantes. Em seu delírio, Eronides reencontra sua amada, agora mais velha e compreende que “Marialice viera para sempre”.
Passa a noite com Marialice e, entre os “limites do sonho”, olha-se no espelho. “Brilhavam-lhe os olhos e a venda negra desaparecera” (pág. 131). Eronides “avança para o passado”, passado em que não era cego de um olho. O personagem revive a praga dita por Marialice: “Tomara que um galho lhe fure os olhos, diabo!” (pág. 131). Tal frase é dita em uma corrida pelo bosque, lugar onde sempre passeavam. Como recompensa da praga, Eronides dá a Marialice uma flor azul.
O fim das férias chega e Marialice parte no trem, a flor de vidro que , às vezes Eronides avistava, revela-se: “Na volta, um galho cega-lhe o olho” (pág.132).
Essa narrativa breve, de três páginas, está repleta de enigmas. O primeiro elemento a ser considerado é a epígrafe do conto. Nela há uma passagem do Antigo Testamento em que se lê: “E haverá um dia conhecido do Senhor que não será dia nem noite, e na tarde desse dia aparecerá a luz”, pode-se interpretar que Marialice seja essa luz que chega em uma tarde, em um dia limite entre o sonho e a realidade, luz que vivifica assim como cega. Pois, segundo Jean Chevalier, a luz pode significar:

“Tudo que é maléfico ou de mau augúrio é jogado na sombra e na noite. Existe, por outro lado, uma equivalência simbólica da luz e do olho: o sol é chamado Ilygard y dydd, olho do dia, pelos poetas galeses; a expressão irlandesa li sula, luz do olho, é uma metáfora sábia que designa o brilho do sol”[1].

Outro elemento a ser considerado é a figura do trem. O trem surge como o elemento que sempre lembrará a presença de Marialice. É através dele que, no início da história, há uma personificação de Marialice, assim como no fim da história , o trem é o símbolo de partida da mulher amada. O trem, em seu movimento de idas e vindas, condena Eronides a ter em seu plano de memória a presença de Marialice. É preciso ressaltar que o trem, quando traz a mulher amada, chega em uma tarde (luz citada na epígrafe).
Outra imagem significativa é a “flor azul” que Eronides oferece à Marialice, logo após a amada lhe rogar a praga. Aparentemente, a citação parece descabida dentro da narrativa, mas percebe-se que a flor azul é um contraponto `a flor de vidro. A simbologia da flor azul pode indicar uma leveza que, posteriormente, transformar-se-á em tormento, na flor de vidro.
Desse ponto de partida, talvez, possa-se atar os nós para se decifrar a grande metáfora da narrativa: a flor de vidro. Não se sabe se a cegueira é de fato concreta, há uma possibilidade de ser uma alegoria. A flor de vidro pode representar uma imagem que ficou “congelada” no olhar, Marialice cristalizada nos olhos e no coração de Eronides.
O grande mérito desse conto é a forma como o qual é narrado. Essa história revela-se através de um narrador heterodiegético que conduz o leitor, muito sutilmente, ao plano da memória e do imaginário. A maneira como o narrador introduz o leitor ao conto, acaba por induzir a quem o lê a sentir a inquietação e o tormento dos quais Eronides é vítima.
Assim, nesse limiar de memória e sonho, o tempo é dado em pequenos fragmentos que revelam ao leitor o que é uma possível lembrança e o que é presente, misturando-se ao plano do devaneio, ou seja, ocorre uma analepse (retorno ao passado) e, de certa forma, uma prolepse (sonho premonitório com a flor de vidro). Todos esses recursos tornam o espaço pouco nítido, o ambiente apresenta-se como um espaço rural, provavelmente uma fazenda.
Com tantos recursos de criação enfatizando a temporalidade, o universo psicológico e alegórico, o que se pode concluir, de fato, em A flor de vidro, é que Eronides é prisioneiro de uma paixão. Eronides sobrevive a uma ausência que se cristaliza em flor.


[1] CHEVALIER, p.568.