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segunda-feira, 22 de junho de 2009

RIOS SEM DISCURSO- AINDA JOÃO CABRAL

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque se cortou a sintaxe desse rio,
o fio de água por que esse discorria.

*

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

O poeta descreve, em 24 versos divididos em duas estrofes, o processo de "secamento" de um rio. Esse processo é comparado ao uso da palavra. O signo rio é comparado ao discurso. Na primeira estrofe, quando o rio chega a condição de poça, água que se quebra em pedaços, ele se equipara com a palavra em situação dicionária, ou seja, a palavra solitária que não transmite mensagem.
João Cabral em Rios Sem Discurso revela a realidade de uma região do Brasil que sofre com a seca. Como filho dessa região, o poeta mostra-se como "produto" desse meio. O que Cabral tem a elucidar e a dizer é o que está no foco de seus olhos, a imagem, então, torna-se altamente significativa em sua poesia. Segundo o escritor Alfredo Bosi, "a experiência da imagem, anterior à palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu... A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós".
A realidade da seca é a realidade do poeta. O rio transforma-se em pedra, assim como a palavra muda não comunica. Na segunda estrofe do poema, há uma possibilidade, citada pelo poeta, de o rio reatar-se. Essa possibilidade vem através de uma enchente em que, as poças unindo-se umas as outras, funcionam como as palavras que reatam seu elo sintático, formando um discurso. O poeta, porém, não ilude e não se ilude, a possibilidade aparece como algo raro "Salvo uma grandiloquência de uma cheia".
Encarando a poesia como um ato de consciência, Cabral atinge aquilo que Alfredo Bosi escreve no seu livro O Ser e o Tempo da Poesia:
" A lucidez nunca matou a arte. Como boa negatividade é discreta, não obstrui ditatoriamente o espaço das imagens e dos afetos. Antes, combatendo hábitos mecanizados de pensar e dizer, ela dá à palavra um novo, intenso e puro modo de enfrentar-se com os objetos".